domingo, julho 27, 2014

"O Gestor tem de ser criativo...


e empreendedor. Não pode ser só técnico”
Faltava uma entrevista na GH. A desta edição, a Constantino Sakellarides, director da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP). Como se esperava, a entrevista ao Professor não foi apenas uma entrevista. Foi uma viagem pelo mundo global dos sistemas sociais, onde a “Saúde para todos corresponde a uma das principais conquistas dos últimos cem anos”. Ficam também recados para diferentes protagonistas do sector e a certeza de que é necessário adaptar os planos à crise actual, porque “há famílias que só comem uma refeição por dia, e mal. A crise é muitíssimo séria e vai durar”.


Gestão Hospitalar (GH)O Serviço Nacional de Saúde (SNS) faz, em Setembro, 30 anos. Não vou pedir uma análise exaustiva mas, se compararmos os anos de 1976 e de 2009, o que poderemos dizer relativamente à evolução do SNS?
Constantino Sakellarides (CS) – Bom, 30 anos é uma boa idade! Há já alguma maturidade mas ainda existe suficiente juventude para que seja possível reconduzir-se na vida. É nessa perspectiva que gostava de colocar o Serviço Nacional de Saúde. O SNS do ano 2000 não pode ser o mesmo do da década de setenta, é óbvio! Pode manter os seus serviços básicos (aliás, deve mantê-los e ser um esteio do sistema de protecção social do país) mas precisa de evoluir de acordo com tudo o que acontece à sua volta.
Relativamente ao passado, não há duvida nenhuma de que o SNS prestou um enorme serviço à população portuguesa. Proporcionou uma rede de serviços públicos de Saúde que cobre todo o território nacional; deu às profissões da Saúde condições de desenvolvimento; passou a ser um grande empregador do País; contribui para o seu desenvolvimento, de várias formas; tem algum papel na melhoria dos índices de Saúde a nível nacional (não o papel exclusivo, mas considerável) e, portanto, podemos dizer que o balanço do SNS é extremamente positivo, considerando que tem uma carga genética difícil. Temos de reconhecer que Serviço Nacional de Saúde nasceu num período de grande crise económica mundial, numa altura em que, no País, se deu uma alteração política radical, com muitas incertezas – num período de descolonização complexo – e, portanto temos de pensar bem que carga genética, ou congénita, é que tudo isso acarreta.

GHIsso para dizer o quê Professor?
CS – Para dizer que o futuro do SNS depende, em parte, da análise que se faz do seu passado. E esse balanço para justo e tem de ser feito de forma rigorosa.

GHAinda não foi feito?
CS – Está incompleto. O que se fez foi muito pela rama. Para que o Serviço Nacional de Saúde funcione, realmente, é necessário existir uma classe média suficientemente disponível e capaz, em termos económicos, para pagar os seus gastos e os daqueles que não o podem fazer (cerca de 20 por cento da população portuguesa).
E para pagar o quê, concretamente? Os ordenados que os profissionais devem ter; as infra-estruturas materiais e as tecnologias. Ora bem, muitas destas coisas não existiam na década de 70 – as tecnologias, por exemplo. Foram conquistadas aos poucos. Quando as pessoas dizem hoje que há um desequilíbrio financeiro no SNS não reparam que o problema não é de hoje: o SNS nasceu assim! E se não houver a tal classe média que estabiliza a situação, e que pode pagar pelos que não podem, o problema financeiro vai-se colocar…

GHProfessor, deixe-me ver se entendi: na sua opinião, o problema da Saúde em Portugal, e do SNS em particular, não passa por situações de desorganização e de gestão, mas por não existir uma classe média estruturada e resolvida, em termos sociais?CS – Não é só isso, até porque a questão é interactiva, mas também. Há vários aspectos a ter em conta, e não nos podemos esquecer que a classe média portuguesa tem sido altamente generosa… tem aguentado isto tudo!

GHTem dado o que tem e o que não tem!
CS – Isso mesmo. Agora, para continuar a ser generosa é necessário que a solução que lhe é apresentada lhe interesse. Se verificar que não lhe serve, torna-se menos disponível para ajudar. E aqui há um aspecto que é fundamental: talvez que a maior conquista civilizacional dos últimos 100 anos tenha sido a possibilidade de se atingir aquele patamar em que se consegue ter um sistema de saúde para todos. Isto é formidável e parece que poucos dão atenção a esta conquista. Um Estado que atingiu a maturidade e criou um sistema de Saúde para todos é extraordinário e isso vale todos os esforços. Estamos a falar de se passar de uma situação de grande desigualdade para uma coisa concreta, e essencial, que é a Saúde para todos. Não estamos a falar dos sapatos da Imelda Marcos…

GHEm termos teóricos é difícil não concordar com a análise que faz e com a necessidade de se olhar mais longe. Mas acha que quem vai para a política, ou é chamado para ocupar cargos determinantes no sector da Saúde, tem tempo, disponibilidade, capacidade, e apoio de retaguarda que lhe permita pensar nesta necessidade?
CS – Partilho pouco a pessoalização do poder. As coisas são vistas dessa maneira mas não funcionam assim, até porque o poder pessoal de um ministro é muito relativo. Ele depende, e muito, da sociedade em que está inserido, bem como do Governo e da rede social que o apoia. A visão jornalística que muitas vezes se tem das coisas – e que é, regra geral, simplificadora – é muito perigosa e desinteressante.O patamar de que falei, de Saúde para todos, implica uma situação de boa governança – que não se traduz por bom governo mas por qualidade dos sistemas sociais – que passa por ter 3 ou 4 características específicas e que são a inclusão; a transparência, a responsabilização e a optimização. Se não conseguirmos evoluir, gastamos recursos e não teremos bons resultados. Dou-lhe um exemplo: Quando vem de carro, pela A 5, para Lisboa, sai na CRIL para entrar na Segunda Circular. Há uma fila compacta na entrada e – acontece muito – há sempre pessoas que vão passando à frente de todos. Ou seja, se há quem queira estabelecer uma ordem de convivência existem outros que não querem saber disso. Agora a pergunta: quais são os carros que, regra geral, ultrapassam os que estão na fila? Os melhores: os BMW’s, os Mercedes, etc… não são os “carochinhas”. Esses ficam lá, à espera. E agora você diz-me, “mas isso não tem nada a ver com o sistema de Saúde !”. Errado. Esta atitude tem tudo a ver com o sistema de saúde.

GHTem de explicar Professor!
CS – E explico. Vamos falar dos Cuidados de Saúde Primários (CSP). O que tem de interessante e importante a reforma dos CSP? Ora bem, o que se está a passar, neste domínio, representa um corte profundo com o que existia. As pessoas são atendidas de outra forma; têm outro tipo de acesso e, portanto, as relações entre as pessoas e os profissionais de saúde mudou! Além disso, e no terreno, os profissionais, entre eles, trabalham de outra forma, são cooperantes, substituem-se. Num domínio mais institucional o que temos? Uma situação contratual com a tutela, que lhes dá mais autonomia com mais responsabilidade

GHE podem ser melhor remunerados
CS – Evidente. Mas o que aqui é fundameno tal é a mudança registada a vários níveis. Uma mudança nos comportamentos e nas relações.
GH
É verdade. Hoje o doente pode telefonar para o seu médico de família…
CS – Mudou. Não tem nada a ver com o que existia até aqui. A relação entre os diferentes actores – o médico, o doente, a tutela e mesmo entre os próprios profissionais de saúde (clínico, enfermeiro, administrativo, etc… – alterou-se radicalmente. Registou-se uma ruptura extraordinária que implicou também uma mudança de análise, a vários níveis.
Ora bem, se o que eu vejo na CRIL se mantiver, a reforma vai ter imensas dificuldades em concretizar-se porque as pessoas não estão disponíveis para assumir, numa escala suficiente, as relações necessárias para estabilizar.

GHEstão mais preocupados com eles…
CS – …do que com o colectivo! Ora a transição das relações que anteriormente descrevi, que implica – ao nível das ARS, dos ministérios e mesmo a nível político – um salto qualitativo, acaba por não dar certo se os senhores dos BMW´s não entenderem que têm de permanecer na fila e esperar. O SNS tem dois sistemas de protecção social que continuam a ser importantes: o da solidariedade e o da Previdência. Se as pessoas não comungam destes princípios na sua pratica diária vão distanciar-se do que é compatível com a evolução do SNS do século XXI.
Como pode ver, o problema do SNS não é um problema de ministros, nem sequer dos políticos, mas da própria sociedade portuguesa que reflecte as nossas limitações e os nossos sucessos.

GHNuma sociedade mais evoluída o seu pensamento é valido, mas tenho dúvidas que, a breve prazo e em Portugal, se consiga chegar a esse estádio. Vou dar-lhe como exemplo, a tão falada questão do encerramento das maternidades que acabou por ser um dos motivos da demissão do Professor Correia de Campos. Tratou-se de um acto de um político, mal entendido pela população – dependendo sempre de quem faz a análise, obviamente. De acordo com o que me disse, esta situação deveria ter sido pensada por todos e todos deveriam estar disponíveis para uma colaboração estreita. Não será uma utopia?
CS – Temos de ser socialmente funcionais. A situação de que falou não correu mal por ter sido levada a cabo pelo Professor Correia de Campos. Repare: os governos tendem a gerir por dossiers (o dossier das urgências; o dossier dos CSP; o dossier das maternidades, etc.). Os ministros sentem que têm de tomar medidas de acordo com esses dossiers para as coisas avançarem, e agora vejamos o que faltou no caso que apresentou. Várias coisas. O ideal teria sido que se tivessem feito as alterações com base no ordenamento local e consertar o encerramento de uma coisa com a abertura de outra. Pode fechar-se uma maternidade se se abrir um centro de saúde, por exemplo. Se isto não acontece e se aquela zona é invadida por dossiers verticais, a disfunção é natural.
O local vai impor-se de alguma forma. O local não pode dizer: “não quero que feche!”, mas pode consertar o plano e dizer “senhor ministro achamos que pode fechar a maternidade se abrir um SAP”. Nesse processo, houve alguns locais tentaram fazer isso, apesar de nem tudo ter corrido bem. Como pode ver, a articulação é muito importante quando estão em causa situações em que há actores e interesses diferenciados.

GHTeria toda a lógica que assim fosse. Mas porque é que Portugal não conseguiu ainda estabelecer um envolvimento entre as Autarquias e o sector da Saúde?
CS – É um dos nossos pontos fracos, sem dúvida!

GHHá munícipes inteligentes. Será que eles não se importam com a Saúde da população do respectivo Concelho?CS – Não é que não se importem. O que os autarcas temem é de se envolverem na Saúde e estalarem os orçamentos. Os autarcas sabem o que está a acontecer, conhecem a realidade, os medos deles é que lhes transfiram responsabilidades – em serviços de saúde e noutros – e que essa responsabilidade acaba com os recursos financeiros da autarquia. Agora, é evidente que os chamamos serviços de proximidade – e que incluem os cuidados na comunidade, os cuidados de saúde pública, os cuidados de saúde familiar, a promoção da saúde, etc… – não podem deixar as autarquias de fora. Quando iniciamos os processos de contratualização, em 1996, um dos locais onde começamos, por razões meramente circunstanciais, foi no Hospital Amadora-Sintra. Era um hospital complicado de gerir e pensámos que a contratualização era urgente. A primeira pessoa com quem falei foi com o presidente da Câmara da Amadora, a quem pedi para indicar uma pessoa da autarquia, sem ser político, para acompanhar todo o processo da contratualização. Foi acordado que seria alguém ligado aos serviços do consumidor pois as pessoas que ouvem mais e que podiam apresentar o ponto de vista do utente e do consumidor. Não podemos esquecer que um dos problemas do SNS é que foi um serviço concebido sob o ponto de vista da oferta, nascendo cego sob o ponto de vista da procura.

GHHá algum país europeu, que tenha conseguido fazer evoluir o respectivo serviço publico de saúde, tendo em conta essas condicionantes?
CS – Como disse há pouco, os serviços de saúde são os reflexos das sociedades. No sentido de equilibrar melhor o pensamento da oferta e da procura, os nórdicos têm uma enorme vantagem, porque os respectivos serviços de saúde são geridos a nível local. Mas temos de perceber também que esses países são federações de poder local e, portanto, estão naturalmente favorecidos. Eles não inventaram isso, foi acontecendo assim.
GH
O SNS português é o reflexo do povo que somos?
CS – Ah! Sem dúvida nenhuma! E nós temos de ter uma relação carinhosa com isso! Somos como aquele retrato, onde não se dá para alterar nada.

GHHá também um fenómeno curioso que gostaria que analisasse. Existem hoje cerca de dois milhões de pessoas com acesso aos hospitais privados, devido aos seguros. Se nos reportarmos às Urgências vemos que o tempo médio de espera para atendimento é já idêntico ao dos hospitais públicos. Porquê?
CS – O País é o mesmo, não é? As diferenciações não estão nas características intrínsecas entre o público e o privado. Vou exemplificar. O público tem uma grande desvantagem na medida em que tem de estar aberto todos os dias, para toda a gente e para todas as doenças. O público não pode dizer “eu não faço hérnias”, ou “eu não faço cataratas porque não me convém”, ou “eu não quero ter urgências”, etc.

GHNão pode seleccionar?
CS – Não pode seleccionar nem locais, nem horas, nem pessoas, nem patologias. Tem que fazer tudo.

GHE deve continuar assim?CS – Deve continuar assim – mal fora se não continuasse. Agora, as pessoas têm que perceber que há um preço a pagar por isto. As pessoas têm que entender que o público não foi criado para competir com o privado; o público nasceu para responder às necessidades básicas das pessoas.

GHMas há públicos que querem competir…CS – Está bem… se estão a perder clientes! Mas isso não é a questão. O privado é complementar – estou a falar do privado lucrativo, porque também há o privado não lucrativo. O privado lucrativo tem accionistas que têm que zelar pelo seu dinheiro e, portanto, querem tirar mais-valias. E não há nada de errado nisso, o mundo funciona assim! Ora, continuando neste raciocínio, o privado pode dizer: “vou abrir este serviço e esta especialidade porque me interessa”. E não há qualquer problema. Não vejo nenhum mal em uma grávida dizer que quer ter o seu bebe numa maternidade privada, porque quer fazer o parto com aquele médico. O privado assegura isso…

GHLiberdade de escolha.
CS – Mas outra pessoa pode dizer: “eu vou para o público porque me sinto mais segura. Pode não ser o meu médico a fazer-me o parto, mas eu confio na equipa”. Se eu quiser um quarto privado, com televisão com todos os canais e de alta resolução, não acho mal desde que pague. Mas se eu quero cuidados de qualidade quando preciso deles, a sociedade deve dar-me essa possibilidade sem pagamentos extra.

GHConcorda com a opinião da ministra Ana Jorge, quando ela diz que os bebés
prematuros não devem permanecer nos privados?

CS – Ela como pediatra sabe melhor isso do que eu. Com a ministra posso discutir com a pediatra não! Em todo o caso julgo que há aqui um problema. A garantia da qualidade deve ser igual para todos. Se existe um serviço de pediatra que não é idóneo, então deve ser fechado.

GHAí, as instituições também têm responsabilidades.
CS – Exactamente, mas todos sabemos que a nossa sociedade aceita mal os processos de Acreditação e, depois, queixa-se! Os que protestam contra o serviço público e as funções da regulação são os mesmos que abrem, depois, estas coisas pouco idóneas! Volto ao ponto: é este patamar de aceitar regras sociais – sempre, não só quando nos convém! – que caracteriza a sociedade que é capaz de ter aquele serviço de Saúde para todos e com qualidade
GH
Vamos falar da crise e do SNS. Que reflexos é que esta crise global pode ter na vida dos portugueses e na sua Saúde?
CS – Esta crise é a mais séria da nossa geração. É durável; não vai desaparecer em seis meses. Serão, pelo menos, dois anos muito duros. É uma crise que vai trazer repercussões sociais tremendas – aliás já estão à vista – sendo a principal o desemprego, com o consequente mal-estar, individual e social. Há portanto que dar uma resposta à crise para bem das pessoas, e temos de o fazer de tal forma que, quando sairmos da crise, estejamos bem.

GHÉ uma atitude que cada Estado pode resolver por ele, ou estamos todos reféns dos EUA e temos de esperar para nos levantarmos?CS – Há vários níveis. É evidente que ficamos condicionados, mas não completamente. Entrámos na crise e vamos sair dela. A forma como entrámos na crise, está directamente ligada à forma como vamos sair e temos de pensar noutra coisa que é muito importante: temos de equacionar a maneira de aproveitar a crise. É aí que está a nossa responsabilidade

GHPorquê?
CS – Primeiro, hoje há famílias que comem uma refeição por dia. E má. E esta mancha está a aumentar. Então, e não somos capazes de fazer nada em relação a isto? Temos de fazer e nota-se muita resistência, da parte das instituições, em mudar os seus planos e as suas regras. Fico preocupado, mesmo irritado, ao ver instituições que apresentam planos de acção para o corrente ano sem terem em atenção a situação em que se está a viver. Os seus programas são praticamente iguais aos anos anteriores. As pessoas são muito resistentes à mudança e não querem ver que tudo está diferente. Este fenómeno agudo de contextualização não está a ser feito de forma correcta. Relativamente à alimentação, é evidente que a Saúde não dá de comer, mas o sistema de saúde é a ramificação mais próxima; é o primeiro sector a detectar esses problemas e se nós conseguirmos fazer uma ligação directa entre as periferias, que identificam as coisas, com as respostas correctas, acabamos por ganhar tempo. Outro ponto: se eu comer uma refeição por dia, o que devo comer? Temos várias escolhas e devemos falar às pessoas sobre isso. É preciso pensar e articular. E temos de questionar ainda se vamos deixar ficar as coisas como estão ou se vamos intervir? Eu acho que temos de intervir. A questão alimentar, a questão dos comportamentos ligados à saúde mental – violência, depressão, alcoolismo – a questão do acesso aos medicamentos, são os assuntos mais básicos a que urge dar resposta, de uma forma integral. Se ligarmos as redes sociais com as autarquias e com os hospitais, por exemplo, podemos sair da crise com o trabalho da integração minimamente resolvido. E esse trabalho de integração não só minimizou alguns aspectos da crise como nos abriu portas para sair dela.

GHTemos condições para isso?CS – Se quisermos, temos. Mas tem de ser já; no próximo mês.

GHEstá optimista?CS – Sou bem-disposto por natureza, optimista nem sempre. A situação é muitíssimo séria e temos de reconhecer que temos de mudar de planos.

GHE aí entra outra questão importante. O senhor é director de uma escola que forma administradores hospitalares – a Escola Nacional de Saúde Pública – os seus alunos estão preparados para dar a volta a estes fenómenos e para pensar que nos hospitais não se deve ver apenas a parte mas o todo?
CS – A resposta devia ser que estão. Deixe-me recuar para analisar este fenómeno. Sabe qual é a maior dor de uma pessoa que ensina? É quando os alunos deixam a escola e seis meses depois voltam e dizem: “Não nos deixam!”… A minha resposta é, “faltou alguma coisa”. Se me dizem isso é porque faltou alguma coisa. Aceito que me digam que é difícil, mas não aceito que me digam que não conseguem. Hoje, a Saúde Pública é uma mistura de Ciência com empreendedorismo e o gestor público não tem que ser só um técnico; não tem que ser apenas uma pessoa informada, com base no melhor conhecimento disponível, tem que ser um empreendedor. Um empreendedor é caracterizado por três ou quatro coisas importantes, a primeira das quais é a imaginação. Se eu tenho um problema tenho de pensar em soluções. Mas se eu não estiver disponível para participar nesta actividade, de criar novas respostas, não estou em condições de ser empreendedor. Depois tenho de saber aceitar o risco. Quando sou empreendedor e venho com uma ideia nova – que pode resolver problemas antigos – arrisco-me a ficar mal, mas tenho de correr o risco. No comércio o risco é fechar a loja, aqui é pintar a cara de preto. O que não se pode é pensar que, no mundo actual, se pode levar o pacote prontinho para aplicar no exterior e já está. Resumindo: se alguma coisa tem faltado é maior incidência no empreendedorismo público. Tem de haver imaginação e risco. O mundo é duro, e é preciso reconhecer isso, mas não vale de nada dizer que é duro. Qual é a diferença entre o empreendedorismo público e o privado? O sector público cria bem-estar e o privado cria riqueza, a fórmula ideal é unir o bem-estar com a riqueza

GHA falta de dignificação da carreira de gestor público, pode ser a base para esse problema?
CS – Que falta de dignificação da carreira?! Arranjam-me cada uma!

GHA carreira, na administração pública, não é importante?
CS – Também é, mas o problema não é a dignificação da carreira. É lógico que pode ser sempre melhor e reconheço que se perdeu algum terreno, mas também há pessoas que são contra as carreiras porque pensam que elas são cimento. As carreiras não foram feitas para ser cimento, mas sim para dar aos cidadãos garantias de qualidade no processo. Foram criadas para não haver estagnação; para que se evolua; se vá mais longe.

GHO senhor é um óptimo entrevistado, porque possibilita colocar na mesa as duas vertentes, uma vez que é médico de Saúde Pública e responsável por uma escola que forma gestores hospitalares. Em toda essa questão onde coloca o clínico? Qual o papel do médico nos tempos que correm?
CS – Há vários desafios. Hoje, a Medicina Biomédica faz com que cada um seja diferente do outro. Eu tenho um bom amigo médico, que é turco e que trabalhou comigo na Organização Mundial de Saúde, e que nos últimos sete anos investiu num Centro de Genómica de Saúde Pública! Este centro, que é privado, faz o perfil comportamental e genético de uma pessoa e é capaz de lhe dizer “a senhora pode fumar porque o seu problema, no futuro, não vai ser o cancro do pulmão mas a osteoporose”. Já viu a maravilha? Estamos nesse caminho e, portanto, cada vez mais cada um de nós tem a possibilidade de gerir, à sua maneira, a informação sobre a sua saúde. A prática médica do futuro tem muito a ver com a evolução tecnologia, o conhecimento, a ética e também com a capacidade dos cidadãos para gerir a informação que têm ao seu alcance. Como percebe, isto vai alterar a prática clínica como é vista hoje. As organizações de saúde, por seu lado, têm que estar preparadas, têm que ser mais flexíveis, mais inteligentes. Ao mesmo tempo, os profissionais de saúde, que sonharam sempre serem independentes e ter o seu consultório próprio, têm que pensar em mudar essa vontade. Essa concepção paroquial que todos temos – porque todos nascemos numa paróquia com uma praça e uma igreja e que é uma noção do mundo muito quentinha – acaba por não estar adequada ao que se pretende. É impossível, dentro deste conceito, não fazer parte de grandes organizações. Hoje em dia é impossível seguir as pessoas, ao longo dos anos, sem articular vários sectores e locais. Agora vamos olhar para Portugal. O meu entusiasmo, crónico, pelos Cuidados de Saúde Primários, é porque julgo que encontrámos o modelo. Ou seja, aquilo que está a nascer, com grandes dificuldades, tem as características que salientei. As pessoas fazem parte de uma organização, de forma personalizada, negociada, articulada, que não tem uma estrutura demasiado comercial apesar de se aproximar muito daquilo que as pessoas julgam que é privado. Penso que neste caso, os médicos, principalmente os líderes, sabem que tem uma solução em mãos. Por enquanto pode ser imperfeita e incompleta mas há uma solução e não é teórica; está no terreno. Nos hospitais ainda não chegámos ao mesmo nível. As pessoas ainda não sentem que existe uma solução e eu ainda não percebi porque é que não foi possível avançar nesse sentido. Já me explicaram várias vezes mas eu ainda não entendi.



Marina Caldas , GH n.º 41

Curriculum Vitae:Constantino Sakellarides
- Licenciado em Medicina pela Universidade de Lisboa em 1967- Mestre em Epidemiologia, pela Escola Nacional Saúde Pública em 1972
- Doutor em Saúde Pública pela Escola Nacional Saúde Pública em 1975- Foi médico rural, delegado de saúde e assistente universitário em Moçambique (1967-1971)- Foi director do centro de Saúde Sofia Abecassis, em Lisboa, primeira experiência de Cuidados de Saúde Primários em meio urbano no país (1975-1981)
- Colaborou com a Organização Mundial de Saúde, como consultor (1981-1983)
- Foi o primeiro director académico da Escola Andaluza de Saúde Pública, Granada, Espanha
- Exerceu funções de coordenador de programas de cooperação da OMS com os países europeus (1987-90)
- Desempenhou o cargo de director para as Politicas e os Serviços de Saúde da OMS/ Região Europeia (1991-1996)
- Foi presidente do Conselho de Administração da ARS da Região de Lisboa e Vale do Tejo (1996/7)
- Foi Director Geral da Saúde
- Coordenou o Observatório Português de Sistemas de Saúde
- Foi membro do Think Tank da OMS/Europa (2003) para a revisão da Estratégia Europeia da Saúde
- Foi condecorado com a Medalha de Ouro de Serviços Distintos do Ministério da saúde
- Professor catedrático em Politicas e Administração de Saúde, da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), Universidade Nova de Lisboa
- Presidente Conselho Científico e membro do conselho directivo da ENSP
- Presidente Associação Portuguesa para a Promoção da Saúde
> É actualmente Director da ENSP

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