domingo, janeiro 17, 2016

Há um fantasma ...

Que continua a esvoaçar no Ministério da Saúde
Ao longo dos anos as situações contraditórias a nível das políticas governamentais de saúde têm-se sucedido, assumindo muitas vezes formas inesperadas e até surpreendentes.
As organizações dos profissionais de saúde, apesar das adversidades dos processos políticos e das medidas altamente lesivas dos interesses laborais, têm conseguido, nos aspectos essenciais, enfrentar com determinação essas políticas e esses círculos de interesses que acabam sempre por se adaptar às novas situações e aos novos actores do Poder político.
Depois de 4 anos de obsessão privatizadora e neoliberal por parte do anterior governo, onde as políticas sociais foram erigidas como inimigos a abater e em que o Estado Social foi duramente golpeado, esperava-se que o novo ciclo político e governativo abrisse uma janela de esperança e se apresentasse, de forma decidida, para romper com as anteriores políticas e com os anteriores actores, designadamente na área da Saúde.
A escolha do actual titular ministerial desta área mereceu da minha parte um comentário público num jornal diário, considerando-a uma opção infeliz, tanto mais que o actual governo se apresentou como de esquerda e em ruptura com o passado governativo imediatamente anterior.
Embora tenha sublinhado que a minha opinião era de carácter exclusivamente pessoal e de a própria notícia ter até salvaguardado esse aspecto, surge sempre alguém a considerar que sendo eu um dirigente sindical é sempre difícil evitar que as declarações pessoais não possam comprometer a organização sindical de que se é dirigente e que é sempre difícil separar as opiniões pessoais das de dirigente.
É óbvio que um cidadão por ser dirigente sindical não passa a estar impedido de emitir as suas opiniões pessoais, relegado para uma cidadania de 2ª classe e a não poder exercer o livre pensamento e crítica.
Ao contrário daquilo que durante vários anos foi apregoado à falta de outros argumentos credíveis, a FNAM sempre foi uma organização plural com diversas sensibilidades e uma firme adversária do pensamento único.
Independentemente das posições que os órgãos dirigentes da FNAM tomarem, nunca aceitarei estar inibido em expressar livremente as minhas opiniões.
É neste contexto que não posso deixar de abordar o recente discurso do Secretário de Estado Adjunto da Saúde, Dr. Fernando Araújo, efectuado em 16/12/2015, na apresentação pública de 3 coordenadores para a reforma do SNS.
O discurso, não sendo extenso, contem diversas abordagens habituais em quase todos os conteúdos programáticos de grande parte dos governos, possui ideias genéricas sobre problemas há muito identificados e até quantificados, mas existe um parágrafo que pela sua enorme gravidade político-ideológica merece a elaboração deste artigo de opinião.
Ora, o referido parágrafo, referindo uma das propostas ministeriais, diz o seguinte: “Um Sistema Integrado de Gestão do Acesso, que facilite o acesso e a liberdade de escolha dos utentes no Serviço Nacional de Saúde, nomeadamente no que diz respeito a áreas onde a espera ainda é significativa, criando e estimulando um mercado interno no Serviço Nacional de Saúde“.
Lendo isto, a surpresa é total, desde logo por ter sido proferido pelo referido secretário de estado que eu não julgava rendido a este tipo de ideologia e, por outro lado, porque há largos anos que não havia uma equipa ministerial da saúde que se apresentasse, sem subterfúgios, numa lógica de recuperação político-ideológica da tralha dos conceitos neoliberais mais fundamentalistas e radicais que foram desenvolvidos durante a década de 1980 por Margareth Thatcher, na Grã-Bretanha, para desencadear a destruição do respectivo Serviço Nacional de Saúde (NHS).
Em 1989, o governo conservador de Margaret Thatcher apresentou um documento orientador da reforma do sistema de saúde com o título “Trabalhando para os doentes”. Este documento tornou-se mais conhecido pela designação de “White Paper”.
Nas suas considerações gerais, era afirmado que ele visava: o “fortalecimento do NHS”; “colocar o doente acima de qualquer interesse”; “o governo mantém e não mudará os princípios sobre os quais o NHS foi erigido”; o “NHS continuará aberto a todos e financiado pelas contribuições fiscais”; e que “cada vez mais gente se dá conta de que nova injecção de mais dinheiro não é, por si só, uma resposta”.
Como objectivos gerais foram colocados os seguintes: “oferecer aos doentes, independentemente do seu lugar de residência, melhores cuidados de saúde e maior possibilidade de escolha dos serviços disponíveis”; “gerar maior satisfação e incentivos para os profissionais do NHS que demonstrem responder satisfatoriamente às necessidades e preferências dos doentes a seu cargo”.
Para permitir que os hospitais que prestassem melhores serviços aos seus utentes tivessem acesso aos investimentos financeiros de que necessitavam, o dinheiro para tratarem os doentes poderia “cruzar” as então fronteiras administrativas entre os distritos.
Nesse sentido, todos os hospitais do NHS seriam livres de oferecer os seus serviços tanto ao sector público como ao privado. Deste modo, o dinheiro acederia, diziam eles, com maior fluidez onde fosse prestada a actividade assistencial e onde ela se realizasse melhor (estas disposições definem o principio do “dinheiro que segue o doente”).
Entretanto, foram criados os chamados orçamentos para os “group practices”,justificados como uma forma de ajudar os médicos clínicos gerais a melhorarem a prestação de serviços aos seus utentes.
Os médicos clínicos gerais poderiam solicitar os seus orçamentos ao NHS, que seriam por si administrados para comprarem directamente aos hospitais que entendessem um pacote definido de serviços hospitalares para os seus utentes.
O conceito nuclear deste “White Paper” foi a separação das funções de prestador e financiador, nomeadamente através da separação dos hospitais que prestam os serviços e das autoridades de saúde e os clínicos gerais que lhes compravam esses serviços.
Em torno desta medida, foi também argumentado que se os papéis estivessem separados, as agências financiadoras teriam a possibilidade de efectuar um exame mais cuidadoso das prioridades e necessidades dos doentes e das populações, e uma avaliação mais cuidadosa e independente. Libertas das pressões imediatas de gerir hospitais e das pressões políticas de interesses de grupos profissionais de saúde, poderiam ser efectuadas avaliações mais críticas e tomadas decisões mais racionais.
Deste modo, e ainda segundo os argumentos oficiais, as agências fornecedoras poderiam ficar aptas para competirem umas com as outras pelos negócios das agências financiadoras/compradoras.
No essencial, a separação entre compra e prestação era parte do modelo de reforma assente no “mercado interno” necessário para introduzir a atribuição de recursos baseada na competição entre prestadores e formalizado através de contratos, em que essa atribuição estaria ligada, cada vez mais, ao volume de actividade e aos custos e menos aos gastos históricos .
O White Paper integrou todas as concepções politicas e ideológicas da chamada “competição gerida” que é outro dos chavões neoliberais da política privatizadora na saúde, num processo de importação do modelo dos EUA. Aliás, é por demais elucidativo que o ideólogo da competição gerida, o americano Alain Enthoven, intimamente ligado aos interesses das HMO´s, tenha sido o responsável directo pela elaboração e implementação do White Paper, acompanhado por uma numerosa equipa de largas dezenas colaboradores do seu país.
As questões que acabo de referir não são meras análises especulativas, mas trata-se da enumeração de factos concretos da conhecida e dramática situação de destruição do NHS britânico ao longo das últimas décadas.
Como vimos, todos os argumentos publicitários para procurar dissimular os verdadeiros objectivos destruidores do NHS por Thatcher e evitar uma imediata contestação da respectiva opinião pública, começavam logo por afirmar de forma altissonante que o seu governo iria manter e não mudaria os princípios sobre os quais o NHS tinha sido erigido e passados poucos anos a “demolição” furiosa desse mesmo NHS tinha sido desencadeada, atingindo os seus aspectos mais basilares.
Também por cá, os inimigos do Serviço Nacional de Saúde vão soletrando abundantemente a sigla SNS para melhor dissimular o seus objectivos inconfessáveis de o esvaziarem e finalmente decretarem o seu óbito.
O que é chocante é que um governo que se tornou possível por um largo entendimento entre as várias componentes da esquerda portuguesa venha recuperar ao fim de três décadas um conjunto de conceitos e um modelo que foram responsáveis por uma acção ideológica e de múltiplas medidas políticas que conduziram ao desastre aquele que foi durante largo tempo considerado internacionalmente como o melhor serviço público de saúde e dotado dos melhores indicadores.
Vir falar da livre escolha dos doentes em abstracto e da criação do famigerado “mercado interno” é desde logo uma garantia de que o SNS continuará a ser fustigado por políticas adversas e que as perspectivas que começam a vislumbrar-se só podem causar a mais viva inquietação aqueles que têm dedicado a sua intervenção cívica na defesa dinâmica deste insubstituível direito constitucional.
É que a defesa dinâmica do SNS não é defender tudo o que está e como está, mas introduzir mecanismos concretos e articulados para redinamizar a sua função social e humanista, encontrando respostas sempre novas aos contínuos problemas novos que o vão desafiando na sua missão civilizacional e de contributo para a coesão social.
Não será difícil adivinhar que o “fantasma” da Thatcher que alguns governos anteriores, a começar pelo último, tanto idolatraram conduzirá a muitos resultados possíveis, mas há um que seguramente não visa assegurar: a defesa e a revitalização do SNS como instrumento do direito geral, universal e tendencialmente gratuito à Saúde.
Resta saber como reagirão os partidos e as organizações sociais à esquerda do actual governo, sendo certo que com a existência já deste cartão de visita numa das áreas sociais mais emblemáticas da nossa vida quotidiana não lhes será fácil coabitarem com a negação das suas propostas na área da Saúde.
O “fantasma” neoliberal continua a assombrar os corredores da Avª João Crisóstomo ?
Mário Jorge Neves, Médico e dirigente sindical

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