domingo, março 20, 2016

ACF, entrevista expresso 19.03.16

“Não queremos um SNS para os pobres”
Conhecido como o “eterno ministeriável” na Saúde, Adalberto Campos Fernandes chegou ao cargo. Promete melhorar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) para tratar todos os portugueses e não apenas quem não pode pagar assistência privada. O médico é a€rmativo no diagnóstico sobre o que faz falta nos cuidados, mas cauteloso no prognóstico de tratamento: prometer a sustentabilidade do SNS é “imprudente”.
Sucede a um dos melhores ministros do anterior governo. Sente esse  peso?
Não. As circunstâncias e o contexto político que o Dr Paulo Macedo teve de enfrentar e viveu são totalmente diferentes dos que estou a viver.
Era o contexto melhor?
Não, era um contexto diferente. A existência à época de um acorde de assistência internacional – que permitia que o governo pudesse aplicar medidas de grande restrição financeira com elevada aceitabilidade social – torna o contexto diferente daquele em que procuramos iniciar a saída da crise.
O anterior ministro era considerado de ‘boas contas’ , mas o défice foi superior ao previsto. Era exagerada a imagem de bom gestor?
Não vim para a política para comentar a imagem dos meus colegas.
Mas ficou admirado com o défice de €229 milhões acima do previsto?
Não €fiquei admirado, €fiquei preocupado. Reforcei a minha convicção de que quando algum titular de um cargo político na Saúde anuncia a sustentabilidade do SNS está a ser imprudente.
O SNS é insustentável?
O SNS será insustentável ou não em função daquilo que forem as condições da economia do país e as opções políticas do Governo. E as escolhas são sempre mais difíceis quando o contexto orçamental é restritivo. Outra coisa é saber se a insustentabilidade do SNS é justicada, porque há um bem maior que é o serviço às pessoas.
Ter um ‘buraco’ maior do que era esperado obrigou-o a mudar o quê?
Obriga-nos a uma exigência redobrada em relação ao ciclo político anterior.
É por isso que no orçamento da Saúde está prevista uma redução dos custos com fornecimentos e serviços externos de €71 milhões?
Podemos sempre pôr mais recursos, mas se não cuidarmos da organização e dos modelos de gestão e de e€ciência estamos a prestar um pior serviço com mais gastos. O nosso enfoque vai para medidas de organização inovadoras, como a desmaterialização de processos, a receita sem papel, a centralização das compras ou o registo de saúde eletrónico para evitar duplicação de exames...
Muitas dessas medidas já existem.
Tudo o que existir e estiver bem feito deve ser aprofundado. Não entendo que a herança política, ou a distinção da qualidade das políticas, se faz pela a€rmação de que o que estava feito até ao dia em que entrei estava mal.
O que é que estava bem feito?
Há duas áreas que devem ser prosseguidas. A luta contra fraude e a maior exigência na negociação com os fornecedores, não apenas naquilo que tem que ver com descontos nos preços mas também na forma como compramos, a negociação e aquisição centralizadas.
O orçamento da Saúde derrapa muito devido à inovação, sobretudo em medicamentos. Vai poupar nesta área?
Uma das falhas do anterior governo foi ter levado longe demais a compressão sobre a inovação terapêutica e ter de decidir em estado de necessidade, perante a pressão dos doentes e da opinião pública. Temos de ter uma estratégia para a inovação de qualidade, paga por ganhos de e€ciência e de margem, e ser mais agressivos nos genéricos.
O que significa ser mais agressivo?
Signica que a taxa de mercado tem de aumentar. Criar mecanismos do lado do cidadão para exigir na farmácia o medicamento mais barato. Assinámos um compromisso com o sector para garantir estabilidade jurídica e regulamentar e para alertar para a necessidade de que a sustentabilidade do SNS não seja um problema só do Estado.
Muda o pagamento às farmácias?
Estamos a trabalhar para criar mecanismos que reabilitem o sector. Muitas farmácias estão em grandes di€culdades. Temos de as olhar como um sector estratégico e encontrar um modelo que, salvaguardando a estabilidade orçamental, crie mecanismos para que não €quem tão dependentes da margem e tenham outros lucros relacionados com a prestação do serviço ou até com o aviamento de receitas médicas.
E quando é que isso avança?
Até ao final de Abril.
É um problema difícil : O estado e o utente querem pagar menos e a farmácia quer receber mais.
O que a farmácia quer é uma estabilidade mínima que permita manter a subsistência da atividade. Estamos em processo negocial, mas um dos mecanismos pode ser uma parte do pagamento pelos serviços e menor dependência da margem.
E quem é que paga?
O modelo pode ser repartido entre o consumidor e o Estado.
Em dezembro os hospitais do SNS deviam às farmacêuticas €695 milhões...
As dívidas a fornecedores são um problema histórico que resulta do sub€nanciamento endémico do SNS. Nunca os governos tiveram capacidade de fazer uma dotação orçamental adequada. Como a despesa em Saúde tem uma natureza moral mais aceitável, torna-se politicamente mais fácil um orçamento reti€cativo. Estamos a ensaiar como deslocar o epicentro da doença para a Saúde.
Este ano quer menos 225 mil urgências. Porquê este número?
Muitos doentes recorrem à Urgência por falta de respostas e poderiam ser bem atendidos pelo médico de família. Com o reforço da aposta nos cuidados primários, mais médicos de família, a vinda de aposentados e o reforço da Linha Saúde 24, conseguiremos reter nos cuidados primários uma população que hoje não tem alternativa.
Como é que vai dar médico a todos?
Este ano sairão 369 jovens especialistas e esperamos que se reformem cerca de 180 médicos, ou seja, pela primeira vez temos um saldo positivo. Juntamente com os reformados que aceitem regressar ao SNS, acreditamos poder iniciar o caminho de reversão.
Como é que se explica que não haja médicos que queiram ir para Sintra?
É incompreensível, de facto. No Interior entendemos que o Estado tem de ser mais criativo nos incentivos e que podem ser de carreira, nomeadamente créditos que permitam chegar ao grau seguinte mais depressa. É uma matéria que tem de ser discutida com os sindicatos e que gostaríamos de fazer.
Foi criada uma lista de centros de referência. Não são incompatíveis com a descentralização? Não há soluções ótimas. Qualquer solução que vise a diferenciação e que introduza, como desejamos, competição no SNS pela qualidade pode criar desiquilibrios. Ninguém gostaria de ser operado a um tumor maligno raro por uma equipa que num ano fez um caso
Nessa lista está a Cruz Vermelha Portuguesa , um privado ...
Um dos pré-requisitos que impus foi que nem o ministro nem o secretário de Estado tivessem interferência sobre o juízo técnico. Isso seria o princípio do €m deste modelo. A lista de€nida não é matéria política, é matéria técnica e cientí€ca e todos os centros e cidadãos têm direito ao escrutínio público. Também está a CUF e a Luz. Ninguém duvida de que este ministério e este Governo têm como primado essencial e prioritário a defesa do SNS e perceber que a sua quali€cação passa por avaliação externa, competição e transparência. Nenhum governo ousou fazer o que €zemos com o portal do SNS, em que estamos totalmente expostos àquilo que é o desempenho clínico, económico e €financeiro.
Mas não vai levar ao desinvestimento nos outros hospitais?
Estamos a falar de situações que têm uma baixa frequência e algumas são mesmo raras. É nossa obrigação informar os cidadãos que um centro, pelo seu desempenho, quali€cações, experiência e características, tem condições para ser uma referência. O que não signi€ca que outros deixem de o fazer. Temos de partilhar recursos, ciência e competência. Os meios são exíguos, os recursos são escassos.
A liberdade de escolha de hospitais avança em abril?
Chamar-lhe-ia livre acesso e circulação dentro do SNS. Vamos dar a possibilidade de os médicos de família terem o leque de hospitais da região com as melhores condições para oferecerem a consulta. Em regiões de fronteira, trabalharemos para o utente poder ir a um hospital de outra Administração Regional de Saúde. Os portugueses pagam o SNS através do seu esforço fiscal e têm direito a ter as melhores respostas. Somos pobres , temos escassez de meios e temos de partilhar os recursos.
Os Portugueses já suportam 32% dos custos directos . Vai reduzir este número?
Sim. A começar pela redução das taxas moderadoras. Será dinheiro a menos que as famílias terão de pagar directamente do seu bolso. Uma lista de espera inapropriada faz duas coisas igualmente graves: os pobres com a doença não se tratam e os que são remediados procuram recorrer a uma prestação privada. Isto é socialmente inaceitável e há claramente uma diferença ideológica entre governos. É bom para a democracia, mas um ministro da Saúde não é um contabilista da Saúde, é alguém que de€ne políticas e aplica-as.
Não concorda que quem pode deve pagar a utilização do SNS?
Geraria a maior das iniquidades. Portugal tem um modelo de pré-pagamento €fiscal. Grande parte dos portugueses não paga IRS, portanto há uma parte que é solidária na contribuição antecipatória. A única coisa que entendemos adequado é que no momento da utilização haja uma taxa igual para todos, que não seja uma barreira. Quando um doente entra num hospital, independentemente de ser muito rico ou muito pobre, é um doente.
Em 2015 os privados fizeram um milhão de consultas e de urgências. Melhorando o acesso ao SNS será possível evitar a fuga de quem pode pagar?
Isso ilustra a opção do anterior governo: alguma consolidação orçamental, restrição €nanceira, controlo da despesa e, com isso, a saída de médicos muito quali€cados para o sector privado. E os médicos levam os doentes. Não foi por acaso que no ano passado o sector privado teve o maior crescimento em €financiamento, seguros e prestação, com uma explosão do número de unidades abertas e de investimento. Não temos nada contra o desenvolvimento do sector privado, o que temos contra é que exista uma relação entre público e privado que é predadora do SNS. Vivemos em diculdades para conseguir reter já não só os médicos diferenciados mas também alguns mais jovens que, frustrados com as expectativas, a indiferenciação tecnológica e a degradação das condições de trabalho; optam pelo privado. Tem de ser reposto o equilíbrio. Queremos fazer a viagem ao contrário.
O privado rege-se pela oferta e pela procura. Se fornece é porque as pessoas procuram.
Não queremos um SNS para os pobres. Quando olhamos para o mapeamento da oferta privada, não vemos grandes investimentos em Trás-os-Montes, no Alentejo... Não quero um SNS pago pelos portugueses, com os seus impostos, que obedeça a regras do mercado, porque é imperfeito . O SNS tem uma dimensão nacional de equidade e cidadania e os privados uma dimensão que visa o lucro e mais valias.
Vai avaliar as *arcerias Público-Privadas?
Está em curso, porque a primeira parceria público-privada, Cascais, termina no final de 2018. Não haverá negociação direta. Estão a ser feitos os trabalhos para demonstrar se o interesse público foi bem defendido. Se tiver sido poderá ser equacionado um novo concurso público internacional, senão caberá ao Estado equacionar a possibilidade de atuar.
Quem vai fazer essa avaliação independente?
A Entidade Reguladora da Saúde.
O que é a rede de cuidadores informais anunciada para 2017?
Estamos a envelhecer mais depressa do que a média dos países da Europa e a ter problemas como o abandono de idosos nos hospitais, a falta de suporte familiar, sobretudo nos centros urbanos, e a incapacidade de as famílias suportarem a dependência. É importante a reposição de rendimentos, para que os idosos comprem medicamentos e cuidem da alimentação, e os centros de saúde têm de ter maior presença no domicílio. Para o ano gostaríamos de estabelecer incentivos à condição de cuidador informal.
Que tipo de incentivos?
Podem ser incentivos de natureza fiscal. É ilusório pensar que se resolve o problema da dependência com a institucionalização, muitas vezes não é desejável. Trata-se de densificar uma rede que já existe, que nalguns pontos do país é escassa e frágil.
Ficou surpreendido com as suspeitas de eutanásia no SNS?
Fiquei surpreendido como pessoa e como ministro. Mesmo as pessoas que em Portugal desejam que se legalize a eutanásia não ficariam tranquilas se pensassem que, por absurdo, à margem total da lei e da ética profissional se praticavam atos que não deviam ser praticados. Há um caminho a fazer e que deve ser feito com elevação, serenidade e bom senso.
Como votaria num referendo?
Naturalmente que não vou dizer. Estaria a prestar um mau serviço público. Tenho uma grande expectativa em conhecer as razões e em assistir ao debate
O programa do Governo fala na prevenção, por exemplo para a alimentação saudável. O que vai ser feito?
Há já um protocolo com as indústrias do açúcar para promover a redução do tamanho dos pacotes. É uma medida que sinaliza a importância de fazermos escolhas adequadas. A saúde de cada um está muito nas nossas mãos e esse investimento é muito custo-efetivo e começa pelos mais novos. Vivemos tanto como os nórdicos, mas últimos dez anos são muito determinados pela carga da doença. Não defendo uma sociedade proibicionista, assética e isenta de liberdade individual, mas defendo uma sociedade responsável e capaz de informar os riscos associados às escolhas.
Se não tivesse qualquer constrangimento, o que mudaria na Saúde?
Faria tudo para que os portugueses considerassem a saúde não apenas como um dever do Estado, mas como uma obrigação individual. Tornaria os cidadãos muito mais exigentes com as respostas que nós atribuímos. Não permitiria que em Portugal houvesse uma única pessoa, com indicação para aceder a um qualquer nível de cuidados, que tivesse de estar à espera por não ter rendimento.
Que avaliação está a ser feita ao subsistema da ADSE?
A ADSE gera muita paixão política, muita notícia e comentários. O Governo fará aquilo que está no seu programa para poder dizer se continua.
E continua?
Não vejo como não continuar. É paga pelas quotizações dos próprios, o Estado já não tem nenhuma comparticipação e os sindicatos desejam que continue. A partir do momento em que foi criado o SNS, deixou de ter sentido um subsistema público a conviver com o sistema nacional e universal. AADSE deveria ter terminado em 1979. Dizia-se que os privados eram financiados pelo Estado indiretamente e essa questão deixou de existir, porque hoje os fundos são exclusivamente quotizações dos trabalhadores. AADSE tem de ter capacidade para uma estratégia de sustentabilidade e perceber que há fundos de reserva a ser constituídos para prevenir o futuro, porque é, em certa medida, um seguro público muito aberto, sem exclusões. AADSE é muita generosa na amplitude das coberturas...
Não reduzirá as contribuições se continuar a dar lucro?
Isso tem de ser discutido com os sindicatos, que têm um papel determinante na definição das escolhas. Deve haver uma evolução progressiva para uma associação mutualista, no sentido de que a ADSE tem fundos exclusivamente dos trabalhadores, e o Estado não deve ter participação ativa. Estamos na fase de avaliação e qualquer decisão será tomada em concertação com o interesse dos próprios trabalhadores.
Faz sentido dar benefícios a cônjuges e filhos até 30 anos?
É discutível. É uma proposta que decorre de estudos atuariais produzidos pela ADSE por entender que tem que alargar a base de quotizados. Na última década, a idade média agravou-se em oito anos e isso significa mais encargos e menos sustentabilidade. Nós só temos uma preocupação: garantir que há condições técnicas para a sustentabilidade, que os trabalhadores têm uma palavra determinante no futuro da ADSE e que o Estado português não financia através dos impostos duplas coberturas.
Os privados podem utilizar tratamentos inovadores, por exemplo para o cancro, aprovados só na Europa e os hospitais públicos têm de esperar pela aprovação do Infarmed.
É verdade e é uma das causas que podem levar à insustentabilidade da ADSE. Estamos a criar condições para que haja um padrão nacional, que a ADSE deve equacionar em vez de utilizar fármacos sem o custo-efetividade demonstrado. Até ao final de junho haverá novidades sobre os padrões de prescrição e as recomendações terapêuticas.
João Vieira Pereira e Vera Lúcia Arreigoso, expresso 19.03.16

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